…peço licença para apresentar este relato que é tecido também com os versos do poema “Terra fecunda”1, que eu pari em outubro de 2021, diante da Covid-19. Na ocasião, pedi ao artista Katira (@ilustrakat) que me permitisse ilustrar o meu poema com a sua arte. Gentilmente, ele acatou o meu pedido e levei ao meu Blog um dos quadros que ele produziu em homenagem aos povos indígenas. Então, compartilho aqui um trecho dos muitos versos que escrevivi em pleno sufoco, durante a pandemia:
A ancestralidade habita o coração da Terra e dentro de nós somos tecidos de vozes da diversidade de mundos de história em historia de memória em memória (...) Somos filhos e filhas (...) da Terra Madura do florescimento nós somos a multiplicação da semente dos povos originários
1 de agosto de 2024: dia de Pachamama. Acordei um pouco tarde e ainda sonolenta devido a medicação que eu tomo para lidar com uma doença autoimune. Não descarto que essa doença (em mim) tem relação com o fato de ter contraído (por três vezes) a Covid-19. E quando penso que a nossa Mãe Terra está sentida de tanto sofrimento, não seria normal se eu não percebesse ou nós não percebêssemos os horrores que afetam a nossa Mãe Fecunda: a transmissão de doenças por mosquitos; as doenças cardiovasculares e respiratórias; as alergias e as doenças mentais são uma parte das consequências das mudanças climáticas, como adverte a pesquisadora Letícia M. Tanaka2.
Apesar dos pesares, não descarto o direito de sonhar e sonho com a passarada do Nordeste brasileiro; com as aves do Cerrado/DF, com os parentes de quatro patas e os de barbatanas que habitam a literatura e os sertões; sonho com as imagens transfiguradas nas xilogravuras de J. Borges que estampam uma parede lá em casa e na casa dos meus filhos. O nordestino J. Borges3 vive e reina nas palavras andantes de Eduardo Galeano e no imaginário que transcende o mar, o agreste e o sertão em nós.
É preciso sonhar o sonho que não se sonha só: o sonho por uma Terra sem Males. Com esta perspectiva, mais uma vez peço licença para chamar um eu-coletivo no Hai Kai seguinte4:
Apesar dos pesares, nos resta sonhar: a Mãe Terra nos anima
Saudações ancestrais, Graça Graúna (Filha do povo Potiguara/RN)
Ilustração de Carmen Barbi, no meu livro “Flor da mata”, 2014, p.11. Foto: G.Graúna
Trilhas ancestrais
Aprendi com os meus pais
a trilhar desde cedo
à luz da Ancestralidade
Mergulhei pelos caminhos
ainda na barriga da minha mãe
e à medida que a intuição
foi chegando
aprendi a ler o tempo
nas tranças da minha avó
A Ancestralidade nos une
Graça Graúna
(Indígena, povo potiguara/RN)
XVIII Congresso Internacional da Associação Brasileira de Literatura Comparada ABRALIC, Salvador/BA, julho de 2023.
Literatura e democracia na construção dos saberes indígenas
Graça Graúna (UPE), filha do povo potiguara/RN
Imagem: acervo da Abralic/2023
O presente relato (em construção) sugere uma leitura das diferenças a começar pela relação entre Literatura Indígena, Democracia e Ancestralidade, considerando a indagação da mesa-redonda: Como ensinar literatura com vistas à construção de espaços democráticos de aprendizagem?
Uma possível resposta para essa questão, acolho em Jerome Rothenberg1: “Dê aulas com um chocalho & um tambor”. Busco também em Vera Candau2 um dos caminhos, pois em seus ensinamentos, ela aconselha que um saber só se constrói se houver a noção de conjunto1. Penso na força do coletivo e evoco a liberdade de sublinhar os saberes ancestrais para guiar-me a uma roda de conversa; de maneira que a gente possa revisitar também algumas leituras de minha lavra (em prosa e verso). Aqui, reitero o que afirmo em estudos anteriores: que a voz do texto indígena reivindica o direito dos povos originários de expressar seu amor à Mãe Terra; o direito a bem viver seus costumes, sua organização social, suas línguas e de manifestar suas crenças e que, apesar da intromissão de outros valores, “o jeito de ser e de viver dos povos indígenas vence o tempo: a tradição literária (oral, escrita, individual, coletiva, hibrida, plural) é uma prova dessa resistência”3.
Recordo que ao participar da coordenação do “Projeto Literatura de Direitos Humanos”, junto à Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR) e à Universidade de Pernambuco, no período 2007/2009; muitas barreiras surgiram, pois transitamos entre o desejo, a ação e a reflexão em uma dimensão de quem vive intensamente a experiência humana. E não poderia ser de outra forma, ao falar dessa experiência, pois:
Entendemos que uma experiência dessa natureza tem sempre a companhia de muitos sujeitos. Daí a importância de contá-la em conjunto, pois elas tratam de histórias que vivemos na companhia do outro […] De fato, [essa experiência] carrega um modo singular de estar no mundo e, para nós, carrega também o modo coletivo de estar com o mundo. Essa condição de humanidade que envolve a todos(as) que trabalham com os Direitos Humanos é prova da inseparabilidade entre pensamento e ação4.
Leio Ruffato e me encanto com a seguinte observação: “a literatura só pode se realizar plenamente em um ambiente de liberdade de expressão e de amplo acesso a uma educação de qualidade _ coisas que só são possíveis naqueles lugares onde os fundamentos da democracia encontram-se solidamente enraizados”5. Nesse patamar, sublinho a força da solidariedade às pessoas que vivenciam situações difíceis no campo da arte, da educação. Poucos se dão conta do sofrimento, do abuso de poder, das ameaças, do desrespeito que afligem muitos/as indígenas. Destaco a situação da parente Marcia Tañamak: uma mulher guerreira do Povo Mura (RO), professora, escritora, poeta, doutora pela USP, fundadora do Coletivo Mura: um espaço cultural de vivências, encontro e acolhimento de parentes.
Em uma canoa, Marcia Mura circula bravamente pelo Rio Madeira, numa luta constante contra as hidrelétricas que ameaçam a população ribeirinha e os parentes indígenas em Rondônia. Constantemente, Marcia desce o Rio Madeira para chegar na cabeceira do lago Uruapeara, lugar de origem da sua avó _ onde a sua mãe está retomando um castanhal, como afirma a parente em entrevista ao jornalista Marcelo Carnevale. Nesse ambiente e integrada na luta pelo bem viver e com mais de vinte anos no magistério, Marcia é um exemplo de educadora indígena. Ela dedicou cinco anos ao dia a dia de aulas na Escola Estadual Professor Francisco Desmorest Passos. Nessa Escola foi articulada a sua remoção “sob a queixa de Marcia insistir na temática indígena para estudantes”. A manobra operada pela coordenação pedagógica da Escola “resultou numa sindicância por abandono de emprego, por conta da recusa da professora em se mudar do vilarejo, abrir mão da própria casa, do roçado, da vida comunitária e assumir um novo posto na capital de Porto Velho”.6
No livro “O espaço lembrado”, Marcia Mura narra as experiências de vida nos seringais da Amazônia. Um trecho dessa narrativa revela o quanto Marcia sofreu para tornar-se referência na reconstrução das suas memórias pelo caminho das águas, que é também um caminho sagrado para o seu povo. Em sua narrativa sobre o deslocamento, Marcia Mura descreve _ conforme ela mesma diz_ uma bela imagem; sobre uma embarcação que ela conduz pelas águas do Rio Madeira:
A busca dos homens por melhores estradas de seringais, o encontro familiar, o destino das mulheres em seguir seus maridos, levaram a família de Francisca a navegar para mais longe, nas águas do rio Madeira. Sem dúvida, os novos rumos da vida de muitas famílias na região amazônica foram e ainda são percorridos pelos rios. O rio levou-os para destinos traçados a partir das escolhas feitas no decorrer de suas vidas.7
No poema “Caminho de volta”8, da escritora indígena Marcia Mura, temos um recorte de sua autohistória, isto é, a história de vida contada, versejada pela própria autora:
Sonhei com a maloca ancestral
Sentada no chão batido no cantinho da maloca uma Anciã
Seu olhar transcendia ancestralidade
Tudo emanava o espírito sagrado
As palhas de paxiúba
E aquela anciã que era eu mesma
Agora eu sei o caminho que levará à maloca
Ancestral!
À propósito da feitura do presente texto, na forma de relato; confesso que se trata de uma escrita-respiro oriunda do ato de apreender a importância de ler os mundos pelo viés dos saberes ancestrais. Aqui, cabe uma autohistória. Não é à toa que eu penso nos ensinamentos do educador Paulo Freire, e imagino e (re)escrevo à medida que a (re)leitura vinda da oralidade _ transfigurada na escrita _ se transforma no ato de escrever e viver; no sentido mesmo de que estão vivas (em mim) a poesia, a história e a memória dos antigos.
Expor essa experiência e preservá-la em forma de relato significa um dos modos de ver, de intuir que o nosso papel também é fazer arte9; significa fortalecer a nossa resistência, a nossa identidade indígena. Negar essa resistência configura uma afronta, como diria Jerome Rothenberg, na obra Etnopoesia do milênio10. Sendo assim, compartilho uma porção atávica como sugere o poema “Ao redor da fogueira”; um poema-respiro-resistência que eu escrevi ao longo da Covid-19. Essa escrita se deu como necessidade de respirar. Mediante o convite do Instituto Moreira Sales (IMS), abracei esse projeto que convidou cerca de 170 artistas individuais e coletivos que participaram do programa de fomento à criação em tempos de pandemia. O poema que segue foi acolhido pelo IMS, no projeto da Quarentena11:
Ao redor da fogueira*
Aui estamos
apesar dos tempos sombrios
Aqui estamos
pelo direito de ser
diferente e viver
porque somos iguais
nas diferenças existimos
O tempo desaba
e aqui estamos
do nosso jeito, resistindo
imagine há quanto tempo…
há séculos sobrevivendo
em meio a itromissão
de outros valores
Aqui estamos!
Apesar dos perigos,
do nosso jeito, existimos
pra recuperar a Terra
e cuidar do plantio
na luta contínua
por um lugar no mundo
Aqui, estamos!
Apesar da incerteza,
nosso povo segue
no preparo da chicha
da mandioca e o beiju
no embalo da cantoria
de cigarras e pássaros
Aqui, estamos!
Apesar das injúrias, seguimos!
Do nosso jeito,
mantendo os costumes
de manejar as maracas
e reconhecer no cocar
os sinais da resistência
Aqui, estamos!
Apesar dos tempos obscuros,
a luta continua
no solo sagrado, na caça
na pesca, na crença, na dança
na roda de Toré,
no manejo da Terra, resistimos!
Aqui, estamos!
Apesar da exclusão,
ouvimos os ancestrais
no meio da noite escura
contando muitas histórias
bem ao redor da fogueira.
Resistimos!
Aqui, alhures, na condição de mulher potiguara nessa terra de Tupã; afirmo que os saberes indígenas norteiam meus escritos, quer seja em prosa ou em verso. Nesse ritmo, segurei lutando pelo direito de existir e resistir; pelo direito de falar e escrever do nosso jeito, ciente de que muito antes dos colonizadores atravancarem os nossos caminhos; já singrávamos com a nossa canoa (a literatura indígena) pelo mar da Ancestralidade. Dos ensinamentos, tomo a liberdade de imaginar e escreviver à medida que a (re)leitura oriunda da oralidade _ transfigurada na escrita _ se transforma no ato de escrever e viver; no sentido mesmo de que estão vivas (em mim) a poesia, a história e a memória dos antigos.
Notas
Graça Graúna, escritora indígena potiguara/rn.
Jerome Rothenberg. Etnopoesia do milênio. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2006, p.80.
Vera Maria Candau. Oficinas pedagógicas de direitos humanos. Petrópolis/RJ, Vozes, 2003.
Graça Graúna. Contrapontos da literatura indígena contemporânea no Brasil. Belo Horizonte: Mazza, 2013, p.15.
Graça Graúna, Ernani M. dos Santos e Waldênia L. de Carvalho. Direitos humanos em movimento. Recife: Edupe, 2011, p.18.
Luiz Ruffato. Rascunho: o jornal de literatura no Brasil. /Democracia e literatura/. Disponível em: rascunho.com.br. Acesso em 29/06/2023.
Marcelo Carnevale. A palavra como flecha. Entrevista com Marcia Mura. Disponível em: amazoniareal.com.br. Acesso em 01/jul/2023. Ao longo da entrevista, consta o poema “Caminho de volta”, de Marcia Mura.
Marcia Mura. O espaço lembrado: experiências de vida em seringais da Amazônia. Manaus: Edua, 2013, p.195.
Ver nota 6.
Graça Graúna. Nosso papel também é fazer arte. Revista Literatura em Debate, v. 12, n. 22, p. 223-230, jan/jul. 2018. Recebido em: 18 ago. 2017. Aceito em: 06 dez. 2017.