
O texto que segue é um fragmento/releitura da crônica “re-tra-tos”, de minha autoria e que foi publicada pela UNICAMP no projeto p-o-e-s-i-a: um dossiê sobre poesia contemporânea.

[…] O tempo marcado pela memória alcança um pouco mais de um século de existência; 101 anos de idade, que hoje (17 de março) faria a minha mãe: Dona Noemia, chamada também de Lilia.
Ela nasceu em Nova Cruz/RN e na infância migrou com minha avó Conceição (Vó Ção) para o distrito de São José do Campestre: atualmente, uma pequena cidade que fica a poucos quilômetros de Canguaretama e Goianinha. Entre esses dois municípios vivem os parentes indígenas potiguara, na Aldeia Catu/RN.
Da convivência com a minha mãe, eu teço entre as recordações mais fortes o dia em que ela juntou a filharada (quatro meninas e dois meninos) e com paciência e criatividade nos ensinou a fazer do comum o incomum. Nessa época, por volta dos anos 60, morávamos perto de uma antiga fábrica de enxofre, no bairro do Ibura, em Recife. Um dia, a empresa Pernambuco Tramways cortou a luz da nossa casa. Aos troncos e barrancos sobrevivemos à luz de vela. Essa foi uma das lições de resistência, resiliência, sobrevivência e de fazer parte do coletivo (dentro da família) que intui ao ver Lilia reunir as crias para transformar um velho travesseiro em pavios, e acender a única e velha lamparina de querosene que havia em casa.
Tentei por inúmeras vezes fazer um relato desse acontecimento e me veio, primeiro a ideia de manejar uns versos. Quis escrever para falar do desfecho da história, mas nem sempre a crua realidade cabe em um poema.
[…] ao fazer dezenas de pavios, acompanhei (na condição de filha mais velha) a minha mãe até à mercearia, onde ela vendeu os pavios e comprou cadernos e alguma mistura para o feijão. Chegamos em casa contentes pela façanha. Dias depois, ainda à luz da vela, voltei com Lilia até à mercearia para comprar alguns dos pavios que tecemos, mas não tínhamos dinheiro. Ao comprarmos no fiado, o dono da mercearia (todo arrogante) debochou do nosso trabalho, numa sentença: “um dia da caça, outro do caçador”. Voltamos para casa, de cabeça baixa e envergonhadas pela humilhação.
[…] tempos depois escrevi um poema chamado Tecelã, em homenagem à Lilia e a todos e todas que à luz dos Encantados e dos Ancestrais intuem que a palavra tem alma. É neste sentido que apresento o seguinte poema:
Noites a fio, Lilia atenta aos desafios desmancha travesseiros e faz pavios De fio a pavio dá conta das crias e tece esperanças no escuro toda coragem-Lilia Graça Graúna (indígena potiguara/RN) Recife, 17 de março de 2022
Linda memória. Adversidade que aflora criatividade e fortalece.
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Graidão pelo comentário, querida M. Célia. Abraço grande.
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De fio a pavio, memória poética da resistência!
Lindo texto!
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Querida Rita Godet, muito agradecida pelo carinho. Fique com Nhanderu.
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Tocante memória, Graça. E linda, a troca de pavio por caderno e pão (alimento). Luz por luz e força. Resiliência, criatividade e sensibilidade. Obrigada pela memória belamente compartilhada.
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