Associada à renovação da flora terrestre, a primavera indígena sugere que é tempo também do reflorescimento das mentes para a cura da terra; conforme intuímos dos ensinamentos da IIª Marcha das Mulheres Indígenas. A marcha, realizada em Brasília/DF, se estendeu pelas comunidades dos povos originários, dentro e fora Brasil, entre 7 e 11 de setembro/2021.
A primavera indígena continua e entre as obras que fazem referência ao papel da mulher indígena no mundo, tomo a liberdade de compartilhar esta pequena apresentação acerca do livro da pesquisadora Rosivânia dos Santos: “Os cantos indígenas de Eliane Potiguara e de Graça Graúna”. Publicado pela Criação Editora (Aracajú, 2021), esse livro é fruto da sua pesquisa de mestrado em Letras, na Universidade Federal de Sergipe. O projeto gráfico do livro é assinado por Adilma Menezes, que também participa do trabalho de capa com Alberto Roiphe; a partir da poética linogravura “Beija-Flores”, de Maércio Lopes. Cabe também ressaltar que Roiphe orientou a pesquisa e prefaciou, em forma de carta, o livro de Rosivânia. Na sequência, um trecho (p. 24) da Introdução do livro de Rosivânia:
Foto: G.Graúna
E a propósito da primavera, cabe sublinhar o momento em que eu estava escrevendo este relato. Por telefone, veio para todos/as nós a saudação de Kuarasy Pajé Katu; uma das lideranças dos povos indígenas do Rio Grande do Norte: “Que Tupã e a Mãe Natureza te proteja nessa Sagrada Primavera com muita paz, saúde, prosperidade e que todos os seus projetos se realizem na Luz para todos de sua família. Continuo rezando por vocês”. Ele falou do sagrado ritual do Toré, da animação dos parentes indígenas na aldeia Catu (RN), na comunidade Sagi (RN), da nossa avó Lua que estava linda e destacou o ato de festejá-la; falou do respeito à energia ancestral e do sagrado-feminino.
Assim, à luz das boas palavras do Pajé Amauri, compartilho a carta/e-mail que enviei para Rosivânia do Santos e que ela, gentilmente, publicou na contracapa do seu primeiro livro:
Pindorama, nome Tupi, significa terra de palmeiras e que por extensão ou licença poética pode também significar: terra de rios, de animais, de muitos povos, de muitas gentes. Há algum tempo avistamos as caravelas desembarcando em “nossa” terra. Com elas vinham promessas de “descobrimento”, “progresso”, “salvação” e logo trataram de renomear: Ilha de Vera Cruz, Terra Nova, Terra dos Papagaios, Terra Santa Cruz do Brasil… Brasil, Brasis. “Pátria Mãe Gentil” cantada, homenageada em outros nomes que se destacam. Veja só, Brazil! Gentil, Brasyl (pra quem?): basta compreender que palavras têm poder de encantamento de mundo, para questionar essas veredas de invenção e apagamento. No momento em que escrevemos esta carta, mais de 6 mil indígenas de 170 etnias acamparam (ao longo de agosto e primeira semana de setembro de 2021) na Capital Federal, mobilizados contra o Marco Temporal e a invasão travada por grileiros, madeireiros e latifundiários. Contra a noção de “descobrimento” da nossa Mãe Terra, nos aliamos aos diferentes povos indígenas para repensar a sua/nossa identidade e as palavras tantas para narrar o que somos, como e onde estamos. Quantas são as nossas faces, Brasil-Pindorama?
A ancestralidade é parte de todas/os nós: os nossos antepassados e tudo que foi vivido (de bom ou ruim). A nossa ancestralidade nos faz conhecer a história vivenciada; nos faz perceber como as lutas de outras pessoas podem ser tão delas, quanto nossas. Perceber essas lutas e pensar em formas de lutar; valorizar o que já foi vivido é parte fundamental da nossa condição de pessoa e parte de um povo. A ancestralidade em sua essência é o legado dos nossos antepassados e suas relações históricas com o presente.
A importância de entender as nossas origens está na valorização dos processos históricos que já foram vivenciados e seus reflexos na sociedade e na nossa vida individual. A tradição, a geração e o povo são partes importantes dentro da ideia de ancestralidade. Nessa perspectiva (nos referindo a nossa ancestralidade indígena), buscamos retomar as raízes da nossa identidade de povo brasileiro. É preciso fortalecer os laços com a nossa Ancestralidade e não largar o sonho na busca de uma Terra sem males, como orientam os nossos Encantados. A essência dessa ancestralidade precisa ser retomada, para que exista conscientização e reconhecimento da nossa história, valorizando o papel dos povos indígenas na formação do país.
Refletir sobre a farsa do “descobrimento”, sobre a invasão de nossa terra ou de Pindorama (como sendo uma visão ilustrativa do que chamaram de humanização) é uma das formas de problematizar acerca do que aqui existia antes dos colonizadores; pois eles desconsideraram os conhecimentos e processos de construção da realidade, isto é, suportes para as relações dialógicas com nossa própria história; a história originária desta terra. O abuso de poder dos colonizadores sobre os corpos e mentes originárias é uma amostra do quanto fizeram e fazem para apagar as nossas raízes e invisibilizar a nossa identidade, a nossa história; como se não bastasse o espírito ruim e a infeliz ideia de um progresso pautado no saqueamento dos nossos saberes. Com esse espírito, eles procuraram anular a Constituição da nossa gente. Apesar disso, Pindorama revela os bons instintos; enquanto a farsa insiste em mostrar uma história caricata e mascarar a real história de nossos heróis. Por meio da farsa matam os saberes mais importantes sobre nossa terra, a forma como podemos conviver. Matam nossos conhecimentos. Ceifam nossa identidade. A lógica que se cobriu por cima de Pindorama, separa todos de todos, as terras das tecnologias, os seres humanos dos outros seres vivos. Lembremos: somos muitos! “A terra não nos pertence. Nós é que pertencemos à terra”, como dizem os ancestrais.
Lembremos também de uma imagem bonita em uma carta para o bem viver, redigida por Ailton Krenak. Na carta, ele nos convida a cantar e dançar para o céu; tendo em vista que as humanidades (e não só a humanidade no singular), logo as chamemos de pluralidades, enfim estas mesmas vicejam, prosperam no mundo como um todo. Tentar compreender a VIDA, tentar! Algo que se aproxime do compreensível para esse evento “dentro de tudo, o tempo todo”. Vamos cantar, procurar atalhos sobre as nossas cabeças ou sob os nossos pés, cantar para Taru, cantar para a Mãe Terra, junto com os nossos ancestrais, encontrar o poder da cura. Krenak nos ajuda nesse ritual, pois é urgente, enquanto a vacina não chega, curar nossa vaidade e ignorância.
Todo dia pode ser um novo dia. Entretanto, devemos estar atentos ao que se prende ao velho ranço colonial; pois a mentalidade ocidental pratica o epistemicídio contra os povos indígenas. Em contraponto ao modo ocidental, os povos originários se unem, sob uma única bandeira: a Mãe Terra. A cura do planeta pela manutenção da pluralidade da vida reside nessa consciência; a nossa conexão espiritual com a natureza fortalece o ser coletivo e a necessidade de lutar pelo bem comum. Aos que esbanjam poder e intoxicam nossas terras com promessas de progresso doentio e que ousam desafiar o poder bravio da humanidade, pedimos: deixem as terras sagradas, para que a natureza possa se curar e curar o mundo novamente. Viva o Tupi! Viva a Mãe Terra!
*Carta construída e assinada por Graça Graúna (indígena potiguara/RN) e seus discentes de Licenciatura em Ciências Sociais, da Universidade de Pernambuco, no âmbito da disciplina eletiva de Antropologia Indígena, em 2021.
ASSINAM: Professora Graça Graúna e os discentes Arthur Cintra, Bárbara Lima, Diego Silva, Emanuel Gomes, Emilayne Cruz, Erika Bandeira, Gabriel Vieira, Glauber Frank, Indiara Launa, Innarah Meneses, Lucas Brandão e Milena Souza.
Cada momento pode ser único em nossas vidas. Hoje tive vários momentos importantes e um deles foi ter o privlégio de acompanhar virtualmente o lançamento do livro “Cartas para o bem viver”, publicado pela editora Boto Cor de Rosa Livros, Arte & Café. Participo desse livro que foi organizado por Rafael Xucuru-Kariri e Suzane Lima Costa. O lançamento contou com a participação de Ailton Krenak e Angela Mendes (filha de Chico Mendes), entre outros autores.
O release enfatiza que se trata de um livro de “cartas-urgentes”, como dizem Suzane Lima Costa e Rafael Xucuru-Cariri. O livro traz cartas de indígenas e não indígenas “em uma conversa inesquecível em torno de um desejo de encontro com o Bem Viver”. Entre as 50 cartas, algumas, conforme os organizadores, foram escritas somente com imagens. Dessa antologia de cartas participam Ailton Krenak, Angela Mendes, Sônia Guajajara, Graça Graúna, Tim Ingold, Denilson Baniwa, Taquari Pataxó, Márcia Kambeba, Bianca Dias, Juvenal Payayá, Antonio Marcos Pereira, Rosinês Duarte, Stephanie Pujól, Paloma Vidal, Beth Rangel, Nego Bispo, Leonardo França, Arissana Pataxó e Milena Britto, entre outros. A obra foi lançada no dia 20 de Abril Indígea de 2021.
Que Nhanderu nos acolha,
Graça Graúna
(indígena potiguara/RN)
Para saber mais, acesse gratuitamente; leia e compartilhe: