Canção óbvia

Detalhe de girassol, de van Gogh

Canção óbvia  

        Paulo Freire*

Escolhi a sombra desta árvore

para repousar do muito que farei,

enquanto esperarei por ti.

Quem espera na pura espera

vive um tempo de espera vã.

Por isto, enquanto te espero

trabalharei os campos

e conversarei com os homens.

Suarei meu corpo, que o sol queimará;

minhas mãos ficarão calejadas;

meus pés aprenderão o mistério dos caminhos;

meus ouvidos ouvirão mais,

meus olhos verão o que antes não viam,

enquanto esperarei por ti.

Não te esperarei na pura espera

porque o meu tempo de espera

é um tempo de quefazer.

Desconfiarei daqueles que virão dizer-me

em voz baixa e precavidos:

É perigoso agir

É perigoso falar

É perigoso andar

É perigoso esperar, na forma em que esperas,

porque esses recusam a alegria de tua chegada.

Desconfiarei também daqueles que virão dizer-me,

com palavras fáceis, que já chegaste,

porque esses, ao anunciar-te ingenuamente,

antes te denunciam.

Estarei preparando a tua chegada

como o jardineiro prepara o jardim

para a rosa que se abrirá na primavera.

*Paulo Freire. Pedagogia da indignação. São Paulo: Unesp, 2000

Paulo Freire: 100 anos por uma educação libertadora

Ilustração de Francisco Brenand para o método Paulo Freire de alfabetização de adultos, anos 60.

O grande pensador e educador nordestino Paulo Freire está vivo em nós, de maneira que nos impele sempre a estreitar os laços com a educação libertadora. Poucos se dão conta de que ele é também poeta e é nesse patamar que eu tomo a liberdade de apresentar, mais uma vez, os versos que escrevi em 2 de setembro de 2007, durante o VI Colóquio Internacional Paulo Freire, realizado no Centro de Convenções da UFPE. Em homenagem ao livro “Pedagogia da indignação” e ao centenário (19.09.1921/2021) do seu autor, apresento a minha “Poética da autonomia”:

I

Minha voz tem outra semântica,
outra música. Neste ritmo,
falo da resistência
da indignação
da justa ira dos traídos
e dos enganados

II
Apesar de tudo,
jamais desistir de apostar
na esperança
na palavra do outro
na seriedade
na amorosidade
na luta em que se aprende
o valor e a importância da raiva.
Jamais desistir de apostar demasiado
na liberdade

III

Apesar de tudo,
cabe o direito de sonhar
de estar no mundo
a favor da esperança
que nos anima

do cerrado/DF, setembro de 2021

Saudações libertárias,

Graça Graúna (indígena potiguara/RN)

A arte como exercício de cidadania em João Werner

JoãoWerner:  Karas
          Pela Internet, as primeiras impressões da exposição de gravuras intitulada “Ladrões” me chegam numa mistura de imagem e palavra; pois o artista João Werner – de tão insatisfeito com as desigualdades sociais, estampa em vinte e quatro gravuras um espécie de 3×4 da triste realidade que nos cerca.
 João Werner: Distribuição de rendas
          O pouco que eu conheço da arte de João Werner talvez não me dê o direito de escrever acerca dos seus personagens, dos seus traços, do seu compromisso com o social em meio ao seu apurado senso estético. Conhecendo apenas virtualmente suas gravuras em torno de um cotidiano tão violento, quer seja no Brasil ou em outras partes do mundo; penso que é importante arrecadarmos um tempinho que seja para refletir acerca do tempo de desumanização; ao fazer isto, não estamos refletindo sozinhos, pois Werner aguça em nós a vontade verdadeira de fazer alguma coisa para tornar o mundo melhor. Por meio da sua arte podemos dizer que estamos exauridos do ar pesado oriundo da violência. Muitos até podem ignorar ou torcer o rosto pro outro lado diante da realidade que custa crer; mas não adianta dobrar a esquina e fingir que aquela pessoa lá na escuridão seja um fantasma dos tempos sombrios; fantasmas da falta de liberdade de expressão. Podem até fingir que aquele tiroteio não é na esquina da sua mansão. Imagina, tiroteio em área nobre nunca existiu. Imagina, o dano à propriedade não vai lhe prejudicar em nada; nem as torturas, nem o vandalismo, nem as detenções; nada disso vai tirar a sua sanidade, a sua boa fé, a sua honestidade, a sua consciência étnica e tudo que lutamos para obter a custa de sacrifício e direitos.
João Werner: Tiroteio
          Visitar ainda que virtualmente, ou atravessar as ruas de Londrina e ver de perto as gravuras de Werner é uma forma de exercer a cidadania e mostrar que por meio da arte também se faz militância pelos direitos humanos.
Nordeste do Brasil, verão de 2012.
Graça Graúna (indígena potiguara/RN)

Para saber mais, acesse o link:
http://www.joaowerner.com.br/