A propósito da moça com o livro

Moça com o livro. Reprodução do Jornal Folha de São Paulo,
em homenagem aos 60 anos do MASP.
Na semana dos 456 anos da cidade de São Paulo, a Folha de São Paulo publicou alguns encartes com reproduções (em papel couchê) de obras que fazem parte do acervo do Museu de Arte de São Paulo (MASP), tais como: o Pobre pescador, de Paul Gaugin; A canoa sobre o Epte, de Claude Monet; A bailarina vista dos bastidores, de Toulouse-Lautrec; O escolar, de Vicent Van Gogh; Rosa e Azul (as gêmeas), de Pierre-Auguste Renoir; Quatro bailarinas em cena, de Edgar Degas; Rochedos em L’Estaque, de Paul Cézanne e Moça com o livro, do brasileiro Almeida Junior (1850-1899). Um presente e tanto! Uma das reproduções chamou a minha atenção, mais pelo conteúdo; ainda que, na forma, o seu autor não seja considerado moderno. Segundo os estudiosos do assunto, esse pintor desenvolveu a arte de pintar mulheres e livros, destacando também os cabelos curtos das suas personagens; “o que até então no Brasil, eram práticas de estrangeiras ou prostitutas […] E, mesmo assim, ao retratar a ‘Moça com o livro’ ao ar livre, o artista se aproxima da prática impressionista que ocorria em Paris, no fim do século 19”, como sugere o texto do encarte da Folha de São Paulo (2008).

Passei um bom tempo contemplando a arte de Almeida Junior e fico me perguntando sobre o tempo que se leva para se reconhecer fazendo parte de um universo em que o ato de ler se confunde com amar e viver; crescer e provavelmente morrer de esperar; mergulhar ou abrir novos caminhos como quer a sensualidade do olhar, da boca pintada e da blusa branca decotada que se confunde com as páginas brancas ou escandalosas do livro; assim, como sugere a estreita relação entre a mulher e a literatura na pintura desse paulistano de Itu. Ao estabelecer também o confronto e as relações entre o ser e a leitura, esse artista revela ao mundo sua percepção em torno da condição feminina, para não esquecermos que até 1838 as mulheres eram proibidas de ler e para tanto, elas precisavam de autorização.

A propósito da mulher-leitora na pintura impressionista de Almeida Junior, reitero minhas impressões acerca da condição feminina em um depoimento meu no livro Retratos (antologia poética organizada por Elizabeth Siqueira e Laura Areias), onde relato que somos um feixe de acontecimentos. Desse modo, saudando a moça com o livro,

saúdo as minhas irmãs
de suor papel e tinta
fiandeiras
tecelãs
retratos que sonhamos
retratos que plantamos
no tempo em que a nossa voz era só silêncio

Graça Graúna (idígena potiguara/RN)

Nordeste do Brasil, 30 de janeiro de 2008

Sementes de histórias*

Na superfície de uma caixa de madeira, a pintura revela seus mistérios em forma de círculos paralelos que se cruzam e ampliam o horizonte de possíveis caminhos ancestrais.
Coincidentemente, a artesã é uma mulher carinhosamente chamada de Baixinha, tem cabelos pretos estirados e curtos, com semblante indígena. Edilene Abreu, fez uma caixa e nela imprimiu a possível de uma aldeia à luz do seu imaginário que é, em parte, sua leitura de mundo, do cerrado.
A ordenação dos círculos, o tracejado cor-de-terra que entra em harmonia com a brancura e com o tom laranja predominante se misturam a pequenos quadrados dentro de círculos menores, até alcançar o centro do desenho que sugere uma possível lugar ancestral.
O desenho traz oito círculos inteiros e marrons que parecem tocar o infinito no movimento de luz e sombra que se articulam até o centro do grafismo, de tal forma que sugere o habitat e o imaginário dos Yanomami.
Com efeito, a presente descrição é nada mais que a minha leitura em torno de um presente que eu recebi, isto é, uma caixa de madeira, compartimentada; feita exclusivamente para guardar meus colares indígenas e porções de sementes do cerrado, entre outrs caminhos onde costumo curcular.
Em homenagem à mandala que ilustra esse porta-jóia e à arte de contar histórias (verdadeiras sementes do universo indígena), compartilho este relato. Assim, torno a ver nessa caixa as contas do meu colar (Cf. o poema Canción peregrina, de minha autoria) e um punhado de histórias de diferentes etnias:
Yo tengo um collar
de muchas historias
y diferentes etnias.
Se no lo reconocen,
paciência.
[…]
Nosotros habemos
de continuar gritando
la angustia acumulada
hace 500 años.
Yo tengo um collar
de muchas historias
y diferentes etnias.
Graça Graúna (indígena potiguara/RN)

(*) Graça Graúna, 18.set.2007. Esta crônica é parte do meu livro, “Sementes de história” (mais um livro em busca de um editor).