XVIII Congresso Internacional da Associação Brasileira de Literatura Comparada ABRALIC, Salvador/BA, julho de 2023.

Literatura e democracia na construção dos saberes indígenas

Graça Graúna (UPE), filha do povo potiguara/RN

Imagem: acervo da Abralic/2023

O presente relato (em construção) sugere uma leitura das diferenças a começar pela relação entre Literatura Indígena, Democracia e Ancestralidade, considerando a indagação da mesa-redonda: Como ensinar literatura com vistas à construção de espaços democráticos de aprendizagem?

Uma possível resposta para essa questão, acolho em Jerome Rothenberg1: “Dê aulas com um chocalho & um tambor”. Busco também em Vera Candau2 um dos caminhos, pois  em seus ensinamentos, ela aconselha que um saber só se constrói se houver a noção de conjunto1. Penso na força do coletivo e evoco a liberdade de sublinhar os saberes ancestrais para guiar-me a uma roda de conversa; de maneira que a gente possa revisitar também algumas leituras de minha lavra (em prosa e verso). Aqui, reitero o que afirmo em estudos anteriores: que a voz do texto indígena reivindica o direito dos povos originários de expressar seu amor à Mãe Terra; o direito a bem viver seus costumes, sua organização social, suas línguas e de manifestar suas crenças e que, apesar da intromissão de outros valores, “o jeito de ser e de viver dos povos indígenas vence o tempo: a tradição literária (oral, escrita, individual, coletiva, hibrida, plural) é uma prova dessa resistência”3.

Recordo que ao participar da coordenação do “Projeto Literatura de Direitos Humanos”, junto à Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR) e à Universidade de Pernambuco, no período 2007/2009; muitas barreiras surgiram, pois transitamos entre o desejo, a ação e a reflexão em uma dimensão de quem vive intensamente a experiência humana. E não poderia ser de outra forma, ao falar dessa experiência, pois:

Entendemos que uma experiência dessa natureza tem sempre a companhia de muitos sujeitos. Daí a importância de contá-la em conjunto, pois elas tratam de histórias que vivemos na companhia do outro […] De fato, [essa experiência] carrega um modo singular de estar no mundo e, para nós, carrega também o modo coletivo de estar com o mundo. Essa condição de humanidade que envolve a todos(as) que trabalham com os Direitos Humanos é prova da inseparabilidade entre pensamento e ação4.

Leio Ruffato e me encanto com a seguinte observação: “a literatura só pode se realizar plenamente em um ambiente de liberdade de expressão e de amplo acesso a uma educação de qualidade _ coisas que só são possíveis naqueles lugares onde os fundamentos da democracia encontram-se solidamente enraizados”5. Nesse patamar, sublinho a força da solidariedade às pessoas que vivenciam situações difíceis no campo da arte, da educação. Poucos se dão conta do sofrimento, do abuso de poder, das ameaças, do desrespeito que afligem muitos/as indígenas. Destaco a situação da parente Marcia Tañamak: uma mulher guerreira do Povo Mura (RO), professora, escritora, poeta, doutora pela USP, fundadora do Coletivo Mura: um espaço cultural de vivências, encontro e acolhimento de parentes.

Em uma canoa, Marcia Mura circula bravamente pelo Rio Madeira, numa luta constante contra as hidrelétricas que ameaçam a população ribeirinha e os parentes indígenas em Rondônia. Constantemente, Marcia desce o Rio Madeira para chegar na cabeceira do lago Uruapeara, lugar de origem da sua avó _ onde a sua mãe está retomando um castanhal, como afirma a parente em entrevista ao jornalista Marcelo Carnevale. Nesse ambiente e integrada na luta pelo bem viver e com mais de vinte anos no magistério, Marcia é um exemplo de educadora indígena. Ela dedicou cinco anos ao dia a dia de aulas na Escola Estadual Professor Francisco Desmorest Passos. Nessa Escola foi articulada a sua remoção “sob a queixa de Marcia insistir na temática indígena para estudantes”. A manobra operada pela coordenação pedagógica da Escola “resultou numa sindicância por abandono de emprego, por conta da recusa da professora em se mudar do vilarejo, abrir mão da própria casa, do roçado, da vida comunitária e assumir um novo posto na capital de Porto Velho”.6

No livro “O espaço lembrado”, Marcia Mura narra as experiências de vida nos seringais da Amazônia. Um trecho dessa narrativa revela o quanto Marcia sofreu para tornar-se referência na reconstrução das suas memórias pelo caminho das águas, que é também um caminho sagrado para o seu povo. Em sua narrativa sobre o deslocamento, Marcia Mura descreve _ conforme ela mesma diz_ uma bela imagem; sobre uma embarcação que ela conduz pelas águas do Rio Madeira:

A busca dos homens por melhores estradas de seringais, o encontro familiar, o destino das mulheres em seguir seus maridos, levaram a família de Francisca a navegar para mais longe, nas águas do rio Madeira. Sem dúvida, os novos rumos da vida de muitas famílias na região amazônica foram e ainda são percorridos pelos rios. O rio levou-os para destinos traçados a partir das escolhas feitas no decorrer de suas vidas.7

No poema “Caminho de volta”8, da escritora indígena Marcia Mura, temos um recorte de sua autohistória, isto é, a história de vida contada, versejada pela própria autora:

Sonhei com a maloca ancestral

Sentada no chão batido no cantinho da maloca uma Anciã

Seu olhar transcendia ancestralidade

Tudo emanava o espírito sagrado

As palhas de paxiúba

E aquela anciã que era eu mesma

Agora eu sei o caminho que levará à maloca

Ancestral!

À propósito da feitura do presente texto, na forma de relato; confesso que se trata de uma escrita-respiro oriunda do ato de apreender a importância de ler os mundos pelo viés dos saberes ancestrais. Aqui, cabe uma autohistória. Não é à toa que eu penso nos ensinamentos do educador Paulo Freire, e imagino e (re)escrevo à medida que a (re)leitura vinda da oralidade _ transfigurada na escrita _ se transforma no ato de escrever e viver; no sentido mesmo de que estão vivas (em mim) a poesia, a história e a memória dos antigos.

Expor essa experiência e preservá-la em forma de relato significa um dos modos de ver, de intuir que o nosso papel também é fazer arte9; significa fortalecer a nossa resistência, a nossa identidade indígena. Negar essa resistência configura uma afronta, como diria Jerome Rothenberg, na obra Etnopoesia do milênio10. Sendo assim, compartilho uma porção atávica como sugere o poema “Ao redor da fogueira”; um poema-respiro-resistência que eu escrevi ao longo da Covid-19. Essa escrita se deu como necessidade de respirar. Mediante o convite do Instituto Moreira Sales (IMS), abracei esse projeto que convidou cerca de 170 artistas individuais e coletivos que participaram do programa de fomento à criação em tempos de pandemia. O poema que segue foi acolhido pelo IMS, no projeto da Quarentena11:

Ao redor da fogueira*

Aui estamos

apesar dos tempos sombrios

Aqui estamos

pelo direito de ser

diferente e viver

porque somos iguais

nas diferenças existimos

O tempo desaba

e aqui estamos

do nosso jeito, resistindo

imagine há quanto tempo…

há séculos sobrevivendo

em meio a itromissão

de outros valores

Aqui estamos!

Apesar dos perigos,

do nosso jeito, existimos

pra recuperar a Terra

e cuidar do plantio

na luta contínua

por um lugar no mundo

Aqui, estamos!

Apesar da incerteza,

nosso povo segue

no preparo da chicha

da mandioca e o beiju

no embalo da cantoria

de cigarras e pássaros

Aqui, estamos!

Apesar das injúrias, seguimos!

Do nosso jeito,

mantendo os costumes

de manejar as maracas

e reconhecer no cocar

os sinais da resistência

Aqui, estamos!

Apesar dos tempos obscuros,

a luta continua

no solo sagrado, na caça

na pesca, na crença, na dança

na roda de Toré,

no manejo da Terra, resistimos!

Aqui, estamos!

Apesar da exclusão,

ouvimos os ancestrais

no meio da noite escura

contando muitas histórias

bem ao redor da fogueira.

Resistimos!

Aqui, alhures, na condição de mulher potiguara nessa terra de Tupã; afirmo que os saberes indígenas norteiam meus escritos, quer seja em prosa ou em verso. Nesse ritmo, segurei lutando pelo direito de existir e resistir; pelo direito de falar e escrever do nosso jeito, ciente de que muito antes dos colonizadores atravancarem os nossos caminhos; já singrávamos com a nossa canoa (a literatura indígena) pelo mar da Ancestralidade. Dos ensinamentos, tomo a liberdade de imaginar e escreviver à medida que a (re)leitura oriunda da oralidade _ transfigurada na escrita _ se transforma no ato de escrever e viver; no sentido mesmo de que estão vivas (em mim) a poesia, a história e a memória dos antigos.

Notas

  • Graça Graúna, escritora indígena potiguara/rn.
  1. Jerome Rothenberg. Etnopoesia do milênio. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2006, p.80.
  2. Vera Maria Candau. Oficinas pedagógicas de direitos humanos. Petrópolis/RJ, Vozes, 2003.
  3. Graça Graúna. Contrapontos da literatura indígena contemporânea no Brasil. Belo Horizonte: Mazza, 2013, p.15.
  4. Graça Graúna, Ernani M. dos Santos e Waldênia L. de Carvalho. Direitos humanos em movimento. Recife: Edupe, 2011, p.18.
  5. Luiz Ruffato. Rascunho: o jornal de literatura no Brasil. /Democracia e literatura/. Disponível em: rascunho.com.br. Acesso em 29/06/2023.
  6. Marcelo Carnevale. A palavra como flecha. Entrevista com Marcia Mura. Disponível em: amazoniareal.com.br. Acesso em 01/jul/2023. Ao longo da entrevista, consta o poema “Caminho de volta”, de Marcia Mura.
  7. Marcia Mura. O espaço lembrado: experiências de vida em seringais da Amazônia. Manaus: Edua, 2013, p.195.
  8. Ver nota 6.
  9. Graça Graúna. Nosso papel também é fazer arte. Revista Literatura em Debate, v. 12, n. 22, p. 223-230, jan/jul. 2018. Recebido em: 18 ago. 2017. Aceito em: 06 dez. 2017.
  10. Ver nota 1.
  11. IMS Convida/Quarentena. Disponível em: https://ims.com.br/convida/graca-grauna/. Acesso em 02/jul./2023.

			

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